Em cinco línguas, a algaravia da política ianomâmi
RESUMO
Em sete dias de assembleia e eleições na comunidade de Toototobi, no Estado do Amazonas, Davi Kopenawa foi reeleito líder da associação Hutukara, que representa os interesses dos índios ianomâmis. Debates entre líderes e eleitores e negociações com o Estado brasileiro apontam o domínio dos ianomâmis sobre as artes da costura política.
MARCELO LEITE
Após sete dias de debates e discursos, com tradução nada simultânea nas quatro línguas ianomâmis e em português, aproxima-se o ponto alto da quarta assembleia da associação Hutukara: eleição da nova diretoria. Liderada por Davi Kopenawa Yanomami, 54, e seu filho Dário, 28, a composição atual se candidata à reeleição depois de dois anos de mandato. No centro da maloca, construída para a reunião de várias aldeias na antiga comunidade de Toototobi (no AM, perto da divisa com RR), organiza-se uma fileira de candidatos de oposição para cada posto, cara a cara com os adversários.
São 15h40 de domingo, 7 de novembro, sétimo e último dia da assembleia. Pergunto a Marcos Wesley de Oliveira, do Instituto Socioambiental, há 13 anos educador entre os ianomâmis e meu guia etnológico em Toototobi, se alguém se apresentará para concorrer com Kopenawa. O líder fundou a associação formada só por indígenas em 2004, no vácuo deixado pela extinção do convênio que o Ministério da Saúde mantinha com a organização Urihi, encarregada da assistência médica aos ianomâmis, por sua vez derivada de outra ONG de brancos, a CCPY (Comissão pela Criação do Parque Yanomami, depois Comissão Pró-Yanomami). [Leia mais em folha.com/ilustrissima]
O CARA Kopenawa preside a Hutukara desde sua criação e é obviamente "o cara" em Toototobi, como diriam Lula e Obama. Por isso, o guia Oliveira diz achar que ninguém se arriscaria a enfrentá-lo, mas os ianomâmis o surpreendem mais uma vez.
Gilberto, um desconhecido três décadas mais moço, perfila-se diante do líder que já ganhou o Prêmio Global 500 da ONU e correu mundo em defesa de seu povo. O jovem transpira irreverência e ambição. Seu oponente parece aferroá-lo com os olhos, fazendo justiça ao nome do meio, Kopenawa, que significa "marimbondo". Mas parece mais forte a atra ção exercida sobre Gilberto pela vida glamourosa de Dário e os outros jovens diretores da associação, que vivem em Boa Vista (RR), sede da Hutukara, e compõem a elite de professores de educação em língua indígena cultivada por Kopenawa para receber o bastão e assumir a defesa dos interesses de seu povo diante do Estado.
Democracia é uma arte dos brancos, e Kopenawa aprendeu algumas coisas com eles, "napë pë" (coletivo de "napë", ou não ianomâmi). Não adianta brigar com "napë", ensina. Se brigar, não consegue nada. Em lugar de flechas e bordunas, palavras.
"O presidente [da associação Hutukara] tem de falar forte com os políticos. Vocês não têm medo?" -vocifera Kopenawa. Não é coisa para crianças, explica, mas para "pata", os mais velhos e sábios. Tem de andar pelo Brasil, pela Europa, falar com "napë" como representante do povo ianomâmi. Tem que ser valente, guerreiro.
FASCÍNIO O correligionário Alfredo cobre outros flancos : "Vocês vão ter de ficar longe de suas mulheres. Mexer em computador. Seus velhos vão ficar com muita saudade". Micros, assim como filmadoras e máquinas fotográficas, exercem evidente fascínio sobre os índios, mas são poucos e jovens os que têm acesso a eles, como os dirigentes da associação. São deles também as bermudas mais vistosas (eles recebem uma ajuda de custo de R$ 150 mensais para se manterem na cidade).
Os adversários se encolhem, mas não recuam. Começa a votação, cargo por cargo. A ideia de usar cédulas de papel é abandonada, porque muitos não sabem ler nem escrever.
Opta-se pela formação de filas distintas para os eleitores de cada candidato à vaga de presidente, e assim por diante. Duas, três, quantas filas forem necessárias, saindo da maloca pelo terreiro, mato adentro, homens e mulheres não muito misturados. Pelo estatuto da Hutukara, todo ianomâmi com mais de 18 anos pode votar.
As filas se formam com rapidez. Co nsomem menos tempo para se materializar que a contagem de cada uma por dois "napë". Os índios aguardam a apuração de cada fila, até que se desfaça, com a mesma paciência com que acompanharam os debates por até 12 horas, a cada dia. Mesmo candidatos a presidente se encaminham disciplinados para as fileiras.
É a festa da democracia, estilo ianomâmi. Com a participação dedicada de cerca de 600 índios (as cozinheiras falam em mais de mil, com a responsabilidade de preparar 110 kg de arroz e 20 kg de feijão por dia).
Muitos vieram de perto, a algumas horas ou dias de caminhada, mas convidados de aldeias a centenas de quilômetros, inclusive da Venezuela, chegaram de avião na pista de grama vizinha, a R$ 1.100 a hora de voo.
Uma festa de R$ 232 mil, bancados pela Hutukara com doações de financiadores. O principal é a Regnskogfondet (Fundação Floresta Pluvial), da Noruega, que comparece com R$ 287 mil anuais. Mas o encontro teve apoio extra de sete entidades, entre elas a Fundação Nacional do Índio (Funai), que pagou 50 horas de voo.
EDUCAÇÃO Na pauta da Quarta Assembleia da Hutukara Associação Yanomami, o dia 3 de novembro, uma quarta-feira, está reservado para o tema educação. Na berlinda se acha Alda Regina Amorim Franco, secretária-adjunta de Educação do governo de Roraima, um Estado pouco dado a políticas em favor dos índios (a praça central da capital, Boa Vista, conhecida como "Bola", ostenta a gigantesca estátua de um garimpeiro).
Dário, filho de Kopenawa, ouve as explicações burocráticas da secretária-adjunta sobre as deficientes escolas nas aldeias. Toma então a palavra e, sem que ninguém entenda de imediato, começa a chamar para o centro da maloca representantes das 53 comunidades presentes. Pede que se organizem em duas filas, uma dos que têm escola na aldeia (35 se movem para ela) e outra dos que não têm (18). Por fim, dirige-se só aos 35 privilegiados e pergunt a: Chegou material escolar? Merenda? Carteiras, lousas, armários?
Todas as perguntas recebem um "não" uníssono como resposta. O desconforto das autoridades é visível. Os índios querem respostas, compromissos, prazos, explicações. Em meio aos discursos em línguas ianomâmis, pipocam vocábulos em português: "corrupção", "manipulação". As representantes da secretaria enrolam justificativas, como período eleitoral, ou dificuldade de levar cargas pesadas de móveis e livros, em avião, até as aldeias.
Aproxima-se a hora limite, 16h30, para a decolagem do avião que levaria as autoridades estaduais de volta a Boa Vista. A subsecretária parece aliviada com a partida iminente. Os ianomâmis recebem então a contribuição inesperada do piloto da empresa de táxi aéreo.
A notícia chega primeiro para Davi Kopenawa, que pede o microfone a Dário e anuncia: o piloto sumiu. Ou melhor, decolou. Diz, com ar divertido e sob risadas dos liderados, que vai providenciar uma rede e uma camiseta da Hutukara para cada uma das funcionárias da Secretaria de Educação: "Vocês estão na sua casa. Avião foi embora. Não estou brincando, não".
A sessão de reclamações e queixas prossegue até 17h40, para ser retomada na manhã seguinte. O calor é infernal. Quem não tem o privilégio, como a secretária-adjunta retida, de tomar banho e usar os vasos sanitários do posto de saúde, única construção de alvenaria em Toototobi, se vale do rio, onde também se lavam louças e peixes, e das muitas trilhas ao redor da maloca.
ELOQUÊNCIA Dormir na companhia de 600 ianomâmis pode ser revelador. Em quase todas as noites, o visitante será despertado, por volta das 4h30, por discursos numa das quatro línguas ianomâmi (yanomae, yanomamö, ninam e sanumá). Até palmas se fazem ouvir, das redes armadas sob a maloca onde acontecem as discussões. Marcos de Oliveira explica que são falas de líderes reconhecidos mais pela eloquência do que pelo mando, homens mais velhos que discorrem sobre o momento vivido pela comunidade e serviços que precisam ser realizados.
Toototobi, no entanto, é uma aldeia antiga. Quase ninguém mora ali -a casa coletiva ("xapono") mais próxima, Lasasi, no tradicional formato de anel, fica a uma hora e meia de caminhada. Aos poucos, o "napë" se dá conta de que os improvisos da madrugada tratam da própria assembleia. Não são discursos para parentes e membros da aldeia de origem, mas para o coletivo ianomâmi. Os índios fazem política dia e noite, sem descanso.
Isso fica mais claro na madrugada de sexta-feira. Ainda na quinta, depois do jantar, xamãs de algumas comunidades apresentam danças em que recebem os "xapiri", espíritos com que só eles se comunicam. No transe induzido por "yekuana" (pó de casca da árvore virola e outros ingredientes) soprado em suas narinas, negociam reforços de outras camadas do mundo para enfrentar os males que afl igem os ianomâmis nesta terra ("hutukara"), surgida com a primeira queda do céu.
A duração da dança de cada xamã, porém, foi limitada a 15 minutos e cronometrada pelos jovens diretores da associação Hutukara. Pajés célebres, como Levi, da região de Demini, se recusam a seguir a regra e deixam de se apresentar. Na madrugada, ouve-se a voz forte de Levi, em discurso de protesto. Líderes de outras comunidades veiculam boatos sobre Davi Kopenawa, que dorme longe da grande maloca, e as supostas vantagens - dinheiro, viagens, computadores - que reserva para seu grupo, entre eles o filho Dário.
FOFOCAS O falatório noturno chega ao conhecimento de Kopenawa antes que os "napë" encontrem alguém para traduzir seu conteúdo. Às 8h30 de sexta, o presidente da Hutukara suspende a pauta prevista -prestação de contas pelos diretores Dário, Mozarildo, Alfredo, Marinaldo e Rogel- e convoca uma extraordinária "pata thë ã", conversa de velho, ou conversa de h omem. Chama pelo nome representantes de comunidades Ajuricaba e Aracá para que venham à maloca repetir as "fofocas".
Antes de passar a palavra, contudo, Kopenawa critica os jovens da Hutukara por enquadrar a apresentação dos xamãs, homens habilitados a transitar entre as camadas do mundo que a tradição tupi consagrou com a denominação de "pajés". Kopenawa controla de perto setores nevrálgicos, como a distribuição de comida, mas deixa a burocracia da pauta em plenário a cargo de seus seguidores mais jovens, intervindo só quando o caldo político ameaça entornar. Ele próprio um xamã, explica que carrega Levi em suas viagens porque se sente mais forte na sua companhia. Nega que esteja explorando o colega e que tenha recebido dinheiro em viagens que fizeram para auxiliar na montagem de uma ópera sobre a Amazônia na Alemanha.
Antônio, de Ajuricaba, fala então de computadores que só vão para algumas aldeias, não a sua. Mas se declara feliz, "na frente de todos os napë", pela assembleia da Hutukara, que acompanha pela primeira vez. Morais, de Aracá, desconversa: afirma que nunca fez fofocas sobre xamãs. Ninguém pede desculpas, só "explicações".
Diretores da Hutukara explicitam os critérios para escolher as comunidades que receberão equipamentos multimídia do Ministério da Cultura, parte do projeto Pontos de Cultura, para registro de rituais e produção de novos conteúdos. Um cunhado de Kopenawa diz que é tudo culpa de um missionário, que anda falando mal dele. O próprio Levi se queixa só do tratamento dado aos xamãs, não tendo dúvidas sobre o caráter de Kopenawa. Às 10h, toda a roupa suja está lavada.
Seguem-se cinco apresentações xamânicas, desta vez com tempo livre. Duram até depois do meio-dia, uma média de 25 minutos por performance. A última, a cargo do concorrido Levi, se dedica a tratar as pernas da fotógrafa Claudia Andujar, 79, que sofreram quatro cirurgias desde s ua última visita aos amigos ianomâmis, 11 anos atrás.
CASAMENTO Sábado, em Toototobi, o dia foi dedicado à saúde, segundo ponto de atritos constantes entre indígenas e o Estado dos brancos (o terceiro é a proteção da terra indígena). O cirurgião Antônio Alves, titular da recém-criada Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) na cúpula do Ministério da Saúde, é recebido com pompa. Índias o cercam, pintam seu rosto, tiram a camisa, colocam-lhe nos braços adereços com longas penas vermelhas de arara, usados pelos xamãs e líderes. Davi Kopenawa diz que a nova aliança constitui "um casamento".
O tratamento cerimonioso contrasta com o que havia sido reservado a Gonçalo Teixeira dos Santos, administrador da Funai em Roraima. Sintonizado com políticos de peso no Estado, como o senador Romero Jucá (PMDB), Santos passou pela assembleia, mas deixou Toototobi antes da quinta-feira, para quando a pauta previa debates sobre proteção contra in vasores (garimpeiros, fazendeiros e pescadores). Vale dizer, cobranças ácidas sobre a inoperância da Funai no Estado. Foi, por isso, qualificado de covarde: "A Funai é como um pai que não defende o filho da onça", disparou Dário.
Fora a administração em Roraima, a Funai é bem-vista. Acaba de criar uma frente de proteção ambiental específica para ianomâmis e índios isolados da região. Comandado direto de Brasília, o grupo interventor foi entregue a José Carlos Meirelles, sertanista de reputação construída em 35 anos de dedicação para manter isolados os índios isolados do Acre.
Tática similar, mas de maior alcance, foi adotada pelo governo federal no terreno da saúde. Incapaz de fazer funcionar bem o atendimento a indígenas pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa), criou a Sesai e a subordinou diretamente ao ministro da Saúde. Segundo Kopenawa, a seu pedido.
Alves entra com gosto no casamento ianomâmi. Veste de volta a própria camisa, mas não tira os adereços do braço. Ouve Kopenawa falar das "cagadas" da Funasa, cujos quadros a Sesai herdou, e pedir a exoneração do responsável pela saúde indígena em Roraima, Marcelo Lopes. Retribui dizendo, no discurso de despedida, que agora fala sério, na condição de homem casado, e ouve risadas. Mas Alves não se compromete com nada, no discurso final. E sofre novo assédio no caminho para a pista de pouso: não adianta brigar com "napë", mas, no manual da política ianomâmi, insistir e persistir são armas lícitas.
NOITE DE FESTA Dário ainda tem algo a aprender com o pai e com o que este assimilou dos "napë". O rapaz parece um dos mais nervosos com os questionamentos e a concorrência política. Seu estilo de intimidação dos adversários soa direto demais, sem a verve criativa que demonstrara quatro dias antes, ao separar representantes de aldeias com e sem escola para constranger a secretária-adjunta de Educação de Roraima. Referi ndo-se à incompetência da Funai para barrar os garimpeiros e fazendeiros, que, na sua visão, os adversários eleitorais não terão coragem de enfrentar, ele dispara: "Sem a Hutukara, vocês vão morrer. Vão morrer mesmo".
Ao pé da letra, ele provavelmente está certo: sem organização própria, os ianomâmis permanecerão mudos diante do Estado brasileiro, incapazes de apresentar suas demandas básicas: educação, saúde e segurança fundiária. O erro juvenil de Dário é acreditar que a associação desaparecerá sem a liderança atual.
Seu pai seguramente já se deu conta de que o surgimento de candidaturas avulsas sugere que o controle da democracia ianomâmi não é privilégio do grupo que a pôs em marcha como alternativa ao confronto que acaba em extermínio. Hoje, para os ianomâmis, política é a continuação da guerra por outros meios, entre aldeias ou perante os "napë".
Ao final da contagem das filas, Kopenawa derrota Gilberto por 210 vo tos a 114. Ele ainda é o cara, o "pata". Com escores mais apertados, Dário e os outros rapazes vão se reelegendo. A votação se encerra às 17h55, mas a fila para assinar o livro prossegue até depois das 21h. Kopenawa discursa em yanomae, sua língua, e ninguém providencia tradução para os "napë".
Começam os cantos e danças que atravessarão a noite. A ágora ianomâmi só se esvazia e retorna ao silêncio após as 4h30, já na madrugada de 8 de novembro. A meia dúzia de lâmpadas fluorescentes da maloca se apaga assim que o gerador é desligado. A mando de David Kopenawa, decerto. Segunda-feira é dia de branco.
Nota
O repórter especial Marcelo Leite viajou de Boa Vista (RR) a Toototobi (AM) a convite da Hutukara Associação Yanomami.
A festa da democracia, estilo ianomâmi, mobiliza cerca de 600 índios vindos a pé ou de avião, ao custo de R$ 232 mil pagos por financiadores como a Fundação Floresta Pl uvial, da Noruega
Davi Kopenawa controla de perto setores nevrálgicos da assembleia, como a distribuição de comida, mas deixa o plenário a cargo dos mais jovens, intervindo só quando o caldo ameaça entornar